sábado, 29 de maio de 2010

Epistola Amico

Caro amigo,

Descobri que os muros levantados pela fraqueza são, de todos, os mais difíceis de ser derrubado. Se te falei acerca de uma rebeldia mais madura foi somente porque percebi que não se luta contra a fraqueza, que não se luta contra os muros levantados pela fraqueza, pois estes devem cair por sua própria contradição. Quantas vezes não nos servirmos de nossa “luta contra o sistema” apenas para justificar nossas frustrações? Quantas vezes a auto-afirmação foi apenas dissimulação de nossa fraqueza? Quantas vezes a “alegria da existência” foi apenas o afogar-se num copo? Quantas demonstrações de heroísmo não escondem um ser raquítico sob o disfarce? Quantos ideais rebeldes não serviram para ocultar uma alma submissa? Não meu amigo, essa rebeldia eu não a quero mais. Minhas máscaras têm caído, todas elas, uma por uma. Os elogios acadêmicos, as honras e “distinções”, a vaidade lisonjeada; a cerveja, o barzinho, o relacionamento superficial, a música mais ou menos, a festa sem motivo, a fuga na multidão. Nunca me senti tão alheio a essas coisas. Como diziam os antigos, “a natureza tem horror ao vazio”. Essa frase aplicada à física também se aplica aos sentimentos. Virei quase um monge asceta erigindo o espírito, aqui, no cu do mundo (obs.: “cu” não tem acento, pois é uma monossilábica em “u”). Mas ainda prefiro uma tristeza real a uma alegria camuflada. A tristeza dos homens alegres ainda vale mais do que a alegria dos homens tristes. Que alguém se esforce por sua alegria, isso já o denuncia, e ainda preferiria a tristeza a me esforçar por ser alegre. Nunca construímos tantos muros ao nosso redor quanto quando lutamos por uma alegria fingida. Quantas pessoas fumam um baseado para não ver sua própria caretice? Não me espanta que tanto divertimento e tanto hedonismo seja apenas a fuga de uma vida sem sentido. Com essa alegria fingida nos ocultamos de nós mesmos. Esforçarmos-nos para sermos algo é a melhor maneira de demonstrar aquilo que não somos. E eu cansei de me esforçar para sentir alegria onde não sinto. Não me entenda mal, não quero fazer uma apologia à tristeza, nem me sinto depressivo ou coisa do tipo. Apenas já não consigo mais fingir algumas coisas para mim mesmo. Explodiste a casa, tu me disseste. A expressão talvez não tenha o mesmo significado para mim e para ti. Mas também sinto que explodi alguma coisa em mim, ou melhor, implodi carcaças que já não me deixavam enxergar a mim mesmo. Sinto-me ao mesmo tempo criança e velho. Cansado de tudo e de mim mesmo, e ao mesmo tempo com novos horizontes se abrindo à minha volta. Vejo à minha volta as ruínas de um tempo passado, os incontáveis restos de memória de uma vida passada ainda me assombram, me incomodam. Perturbam meu sono, como se diz. Nos últimos dez anos (ou mais), parece que só quis as coisas erradas. Olho para trás e me vejo no exercício do auto-flagelo, fazendo tudo contrariamente ao que queria e ao que acreditava. Em nome de quê? Em nome de valores e desejos que não eram meus. Em nome de alegrias e tristezas que não eram minhas. Em nome de guerras e batalhas que não eram minhas. É incrível que tenhamos falado de “alienação”, de “submissão”, de “artificialidade”, de “reacionários”. Hoje relembro de algumas coisas e vejo o quanto eu mesmo estava alienado de mim, submisso a “revoluções” e valores que havíamos lido nos livros. Não existe mudança quando ela não é viva, quando ela não segue sua necessidade interna. Reacionário é querer que as coisas mudem porque assim escreveu alguém. Reacionário é aceitar valores que não são seus, sejam eles impostos pela sociedade, sejam eles encontrados nos livros de teor libertário. Em um desses livros li que “a classe média, a burguesia, em muitos casos, faz um uso perverso das leis”, mas acredito também que os eruditos de hoje, em muitos casos, fazem um uso perverso da liberdade. É estranho como o discurso sobre a liberdade degenerou em troca de acusações. Os cristãos acusando os ateus, e vice-versa; fulano acusando beltrano em nome de “valores nobres”, e beltrano esbravejando em nome do povo; um acusa o outro de ser dialético, e o outro acusa o um de ignorar a materialidade da vida. “Recalcado” ao invés de ser um termo para trazer à tona os problemas de outrem e podermos melhor enxergá-lo, atualmente se tornou um xingamento. Quando vemos alguém com problemas internos, ao invés de lidarmos melhor com o problema, podemos então ajudar essa pessoa a se destruir e lançamos em sua cara “Recalcado!”. Existem outros termos também como “ressentido”, “cristão”, “maconheiro”, “porra louca”, etc. etc. etc. A lista não tem fim, e é estranho que a linguagem ultimamente tenha criado tantos xingamentos e tão poucas palavras para louvar. Atualmente nos preocupamos apenas em devolver o xingamento com outro xingamento. É estranho que todo termo rapidamente se transforme em xingamento. Creio que é porque ninguém louva, apenas xinga. Melhor ainda, creio que é porque ninguém sequer pensa no que está fazendo, apenas associa tudo o que vê a um nome feio. Aprenderam a xingar ao invés de pensar, e ao seu xingamento chamam rebeldia. Como crianças mimadas, não refletem mais sobre aquilo que lhe incomoda, sobre suas razões e sobre a maneira de superar ou contornar, apenas reagem xingando. Sequer têm forças o suficiente para enfrentar o problema: apenas xingam. É espantoso que a liberdade tenha sido defendida de maneira rancorosa, tão acusativa. É espantoso que a defesa da liberdade tenha sido utilizada para uns e outros se auto-erigirem como heróis da raça humana. Esta liberdade eu também não quero mais, ainda prefiro a prisão domiciliar em que atualmente me encontro. Diante desse tipo de liberdade, essa prisão tem sido um ninho. Como disse, “a natureza tem horror ao vazio”. Prefiro admitir o meu horror ao vazio, o meu receio e o meu medo de cair no vazio em nome de princípios louváveis. Enfim, caro amigo, se te disse de uma rebeldia sutil é porque antes de ser um herói vazio, eu prefiro ser um cidadão comum, e se aqui escrevo em nome de um personagem, é porque este é um anti-herói, um herói sem-nome, e se é sem nome não é porque quer ser imperceptível, é somente porque não quer uma identidade vazia.

Adiós, hombre! Hasta la vista!