quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Arnaldo Antunes: Ao vivo lá em casa



Arnaldo Antunes é mais um caso daqueles que amadureceram com a idade. Como um bom vinho, se tornou mais suave e mais acentuado, sem o vigor da juventude, porém mais encorpado. Lançou o seu último álbum: “Ao vivo lá em casa”. O que há de incomum neste álbum é o fato de fazer jus ao título: foi gravado em um show ao vivo e na própria casa do cantor/poeta/teórico e crítico de arte. Enquanto muitos jovem artistas reproduzem o passado cantando descalço em grandes casas de show, Arnaldo Antunes, do auge de sua moderna velhice, recebe o público em casa – e, pasmem! – de sapato nos pés. Desde seu nascimento a arte moderna já é marcada pelo rompimento dessa dualidade interior/exterior. Na segunda metade do séc. XIX Allan Poe já narrava as histórias do “Homem das multidões”, Baudelaire anunciava que o poeta perdeu sua auréola no meio da rua, e as imbricações entre a arte, as tecnologias nascentes e o que ocorria nas ruas. Os impressionistas sairam de seus ateliers para pintar “en plein air” e captar as radiações da luz solar. Na física os fenômenos elétricos levavam os cientistas a saírem de suas teorias e irem para as “ruas” a fim de compreender tal fenômeno. Na arquitetura a Torre Eifel já prenunciava essa concepção de espaço onde são imbricados o interior e o exterior, dissolvendo a dualidade entre ambos e desmoronando a relação dentro/fora. Coisa similar ocorre na poesia brasileira com os poetas concretos e o fim da poesia “confessional”, concebida como a expressão de um “eu” internalizado. Arnaldo Antunes segue nessa perspectiva: elimina a dualidade entre vida pública e vida privada (tão querida dos filósofos de gabinete!). Cria um “espaço” fervilhante onde interagem o moderno, o pitoresco e alguma coisa que ultrapassa a soma dos dois. É o caso do “terceiro incluído” que arrasta consigo os dois termos da relação, criando algo que não é nem uma coisa nem a outra. Cria-se, então, uma nova concepção do que seja “habitar”, uma nova concepção de “ser no mundo”. Arnaldo Antunes faz o que gosta, sem se preocupar em contestar, e, em sua concepção tão afirmativa elimina a velha oposição (tão cara aos profissionais da revolução) entre dentro e fora do “sistema”. Se não há nem dentro e nem fora: o que é estar dentro ou fora? “Ao vivo lá em casa” porque a casa/rua é sua! Sobre o CD? Ah, é um álbum simples, feito como comida caseira, sem pretensões de revolucionar o mundo ou o universo musical, do tipo que já não vemos mais por aí!

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Teorema



“Por conseguinte, depois de descobrir, por exemplo na família terrena o segredo da sagrada família, é preciso criticar teoricamente aquela e transformá-la praticamente.” MARX/ENGELS, Teses ad Feuerbach, p. 6, § IV. 


Como já dizia o nosso bom e velho Rui Barbosa: “a família é a célula máter da sociedade”. Deturpando um pouco o sentido atribuído pelo bom ancião, e conferindo um pouco de profundidade à sua frase, diríamos que é na família onde são armados os principais aparelhos de captura da sociedade: é na infância e no seio da família onde se entronizam os principais postulados da sociedade, as suas divisões de classe, e onde se aprende a repeti-los inconscientemente. Daí porque, quando quis falar da sociedade burguesa, Pasolini entrou no seio da família burguesa. E Pasolini entra na família mostrando, inicialmente, o deserto. Deserto este que está presente tanto no final quanto no início do filme e que é o deserto do não-lugar, o “mundo inabitado” para usar a perfeita expressão de um velho amigo. O mundo onde não há desejos, onde não há pessoas, mas apenas, personalidades pré-concebidas, o mundo do sem-rosto-capiroto, o mundo do rótulo vazio. Mesmo a casa onde reside a família é uma casa vazia, apesar de ampla e abastada.
O filme desenvolve-se, todo ele, no seio de uma família burguesa: o pai, a mãe, o filho, a filha e – como não poderia faltar – este elemento acessório da família burguesa negligenciado inclusive por Freud, o quase-parente: a doméstica. Contudo, surge um elemento estranho, inominado e sem nome, no seio desta família feliz. Um jovem que penetra na família – com o perdão da ambiguidade cabível – e ao sair a deixa destroçada simplesmente por revelar os segredos de cada um. Ao filho revela os poderes da arte; à filha o amor; à mãe o sexo; ao pai sua homossexualidade; e à doméstica que ela era doméstica e não um membro da família. Segredo que ele lhe revela recusando-a em mais de um momento. O personagem misterioso é aquele tipo mais do que normal, sem poderes mágicos, sem o charme da galanteria, sem a beleza estonteante, sem a força de Sansão e, como diria Leibniz, sem “o intelecto divino de Descartes”. Nada de mais nele, enfim. Apenas um ser humano qualquer no qual as crenças e valores burgueses não foram incutidos. Apenas um indivíduo cuja individualidade não foi forjada pelos postulados burgueses da sociedade e da posição social, os quais são tão bem reproduzidos nos seio da família. O pai-patrão, a mulher-objeto, os filhos-herdeiros condenados a reproduzirem as figuras do pais, e a doméstica-domesticada. O problema não é a família em si, mas quando a família se torna edipiana, isto é, quando a família é estruturada conforme os padrões sociais: o homem, a mulher, os jovens e os assalariados (que não são nem homens, nem mulher, nem jovens, são apenas mão de obra) e os modos de individuação que correspondem a cada um. Individuação esta que não ocorre segundo os anseios de cada um mas segundo aquilo que lhe é imposto pela sociedade. 
Aquilo que o habitante desconhecido revela às pessoas desta estranha família, sempre tão comum, é apenas a carência sentimental em que vivem. Sua saída de casa provoca uma catarse na vida dessas pessoas que, ao mesmo tempo, se dão conta da vida que levam, mas que não sabem lidar com a situação e catalizam seus anseios e frustrações em atitudes que revelam, ao mesmo tempo sua necessidade de abandonar as postulados sociais que reproduzem sem saber e, por outro lado, sua incapacidade de deixá-los. O jovem que sai de casa, mas se tranca em outra; a jovem que recebe o amor, mas que o cerra em seu punho: o punho da prisão doméstica; a doméstica que se eleva, para depois se enterrar; a mulher que se dá conta de sua vida insossa e entra no desespero do sexo banal, depois na igreja, e oscila entre objeto-sexual e objeto sagrado; o homem que se dá conta de seus desejos homossexuais, mas que permanece preso à sua condição social (de macho-alfa) e não consegue se livrar dela a não ser se condenando ao deserto, como é muito bem encenado ao final do filme, momento em que o homem se despe de seu terno-camuflagem social. Que o burguês sinta-se no deserto ao despir seu terno não é senão porque não concebe outro mundo a não ser este em que vive, nesta medida, para ele, despir-se é uma condenação e não um libertar-se.
O início do filme é marcado por uma “coletiva de impressa” onde várias frases são lançadas à um operário. É nesta entrevista-interrogatório onde Pasolini enuncia o que seria seu “teorema”. Eis algumas das frases: “Se a burguesia transformasse o mundo em burgueses, não conseguiria triunfar em uma luta de classes?” “Seu patrão lhe deu esta fábrica, o que acha do gesto dele?” “O verdadeiro herói desta história é seu patrão” “Ele não o priva da esperança de uma revolução futura?” “Foi um ato isolado ou é uma tendência do mundo moderno?” “Considerando-o como um símbolo da nova tendência do poder, poderia ser uma primeira contribuição à transformação de toda humanidade em pequenos burgueses?” “Então a hipótese seria esta: um burguês, mesmo um dono de fábrica, aja como agir, sempre erra?”
Erra porque não consegue tranformar o mundo em peguenos burgueses, e erra porque ao tentar o contrário – isto é, promover uma revolução – a primeira coisa que faz é reproduzir os postulados que tenta superar. E se não consegue transformar o mundo em pequenos burgueses é porque o primeiro postulado da burguesia, a compra e a venda, requer um mundo reificado, onde os próprios sentimentos devem ser passíveis de caber num rótulo: a amizade num aperto de mãos, o amor no matrimônio, o sexo no pornográfico, o prazer no entretenimento, a produção num salário. Tudo sendo passível de ser rotulado e vendido, standardizado. Mas há o desejo, esse estranho e inominável elemento que perpassa e que embaralha todos os rótulos do jogo burguês. Esse elemento diabólico que fazia os padres pecarem, que levou Jesus à Maria Madalena e, quiçá, ainda conduza padres e freiras a estranhos rituais de fornicação e exponha a igreja a constantes ridículos. Este elemento do mundo pagão que não cabe na quantificação da moeda, que torna caduco o determinismo econômico onde querem nos inserir. O desejo que não pode ser negado porque toda negação do desejo é uma contradição e atenta contra aquilo que move a própria vida. Como diria Marx, a luta de classes é o motor da história, e por trás da luta de classes há o desejo. O desejo, esse elemento marginal que invade as beiras de estrada, os bares de ponta-de-esquina, as celebrações da favela e que constantemente expõe ao ridículo pais, mestres, machões, moças de família, senhoras distintas e grandes empresários. 
Eis o que acontece com a distinta família, todos erram, seja em sua prisão seja na tentativa desastrada e contraditória de se libertar sem romper com o cárcere, e continuam reproduzindo os rótulos desse estranho comercial de produtos denominado “condição social”. O filho que vai de uma casa para se prender em outra, a mulher que sai do insosso e cai no banal, a filha que sai da incapacidade de amar para o amor catatônico e a negação do desejo, a empregada que sai da subserviência para o auto-rebaixamento, o pai que sai do social para o inabitado. É esse o exato ponto onde se insere o “teorema” de Pasolini: o que deve mudar é o modo de viver, é preciso pensar uma vida que não reproduza os ditames da moeda, dos modos de produção, de individuação e de negação, imposto pela mesma, dos quais a família é – como foi involuntariamente diagnosticado por Rui Barbosa – a célula máter.
Na verdade, mais do que a família, a mídia cumpre esse papel hoje em dia. Seus personagens pré-fabricados entabulam modos de individuação, produzem sujeitos pré-programados, envasam os sentimentos na cápsula do estereótipo. É curioso que o filme de Pasolini e o livro “O Anti-Édipo” de Deleuze/Guatarri tenham apenas dois anos de diferença. Ambos tratam, por vias distintas, de um e o mesmo problema. Se Pasolini fala da família, como célula máter da sociedade, é porque fala das relações entre o indivíduo e a sociedade, da qual a família é – numa sociedade burguesa – aquilo onde melhor se representa, é porque a família é a etapa de aprendizado para a vida social. Deleuze/Guattari, por sua vez também falaram da sociedade, do indivíduo e da família, de fluxos de desejo, e de falência de um determinado modo de pensar e de individuação. Tema este que já foi prenunciado por outra dupla “Marx & Engels Co.”, quase um século antes (no Manifesto Comunista). Tema que passa despercebido pela maioria dos marxistas, mas que não passou despercebido por Deleuze/Guattari e muito menos por Pasolini, qual seja, a superação de uma sociedade burguesa não se fará a não ser superando o modo de individuação burguesa. É neste exato ponto, também, onde o marxismo de Deleuze/Guattari traz suas idiossincrasias e voz própria: mudar um sistema político é mudar um modo de viver, e mudar um modo de viver é alterar a imagem do pensamento e propor novos tipos de individuação. Não é de se admirar, assim, que Deleuze/Guattari comecem por questionar a família e sua formação edipiana, formação esta que é calcada nos meios de produção, na detenção das posses pelo pai, na submissão da mulher e dos filhos (que sempre foi muito mais uma submissão financeira do que psicológica). Não é a família em si o que é criticado pelos autores, mas sua formação burguesa, edipiana, e todos os agenciamentos e modos de viver que esta instituição – família – implica. Que os autores insistam no modo de vida nômade é simplesmente porque isso significa um novo tipo de individuação, calcada em outras relações. E é preciso inventar novos valores, novas formas de se relacionar consigo e com o mundo, novas formas de se envelhecer, novas formas de dar vazão à juventude, novas formas de se relacionar com as crianças; é preciso inventar uma nova forma de amar, de sorrir e de ter prazer; é preciso, enfim, inventar uma nova forma de individuação. Porque o Coringa – vocês sabem – quer sorrir.