quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Rio de Janeiro continua sendo...

Após décadas de marginalização, repentinamente, o poder público demonstra seu interesse pelos problemas sociais da favela. Assim... não mais que de repente... e logo após eleições presidenciais onde a direita fez tanta questão de promover o “candidato do bem”; agora, novamente se fala insistentemente em “tropas do bem”.

Concordo que a situação, do jeito que estava, já não poderia mais ser resolvida sem uma invasão do morro por tropas policiais e militares. A polícia do Rio de Janeiro equipada com revólveres calibre 38 jamais daria conta de traficantes com bazucas, bateria anti-aéreas, granadas, mísseis, barricadas, paredão de tiro e sistema de vigilância do território por câmeras de segurança. É quase uma piada... Mas uma coisa resta perguntar: como a situação chegou a esse nível?

Capítulo Um: A proibição

Primeiro, para chegar a esse nível é preciso dinheiro e financiamento. De onde isso vem? Do tráfico, obviamente. Mas por que há o tráfico? Porque há os usuários, diriam os consumidores de notícia pronta, os consumidores do pensamento delivery. Mas acusar o usuário de financiar o tráfico é ridículo. O usuário-dependente é muito mais uma vítima da droga do que financiador do tráfico, e o usuário que não é dependente tem poder de decidir que substâncias irá ingerir. O tráfico existe porque existe a proibição. Não há tráfico de cerveja ou de cigarros, substâncias com maior poder de destruição e de dependência do que a maconha, por exemplo. Mas bastaria proibir álcool ou cigarro para, no outro dia, aparecerem os traficantes, as armas, o crime, etc. A época de maior fortalecimento da máfia nos estados unidos foi justamente a época da lei seca. Foi a lei seca e a proibição do álcool quem criaram Al Capone e sua trupe. Uma vez liberado o uso da maconha, por exemplo, cria-se um rombo nas finanças do tráfico. Foram apreendidas 43 toneladas de maconha, o equivalente a 21.500.000,00 R$. Só com maconha! O que isso significa? Que se o usuário tivesse a oportunidade de plantar o seu pé de maconha no quintal de casa, ele jamais subiria o morro, e esse montante jamais chegaria às mãos dos traficantes. Por que a maconha não é liberada? Pergunte à máfia organizada do tráfico, a qual não se resume somente aos favelados, posto que engloba também políticos e homens do governo! Quem menos tem interesse na legalização da maconha são os traficantes e os políticos que se beneficiam do tráfico. Dito isso, podemos inferir que uma das causas da situação à que se chegou no Rio de Janeiro é justamente a proibição das drogas.

Capítulo dois: O descaso e as desigualdades

Eis o segundo ponto. Porquê nunca foi dado oportunidade às comunidades carentes? Muitos que estão ali e se envolvem com o tráfico o fazem somente porque nunca tiveram oportunidades na vida. Nunca tiveram oportunidade de uma educação de qualidade, de lazer, de esporte, de cultura. A única opção que tinham era entre trabalhar feito escravo e assistir TV. E aí o indivíduo resolve ser traficante. Ora, por quê? É óbvio! E aí me vêm os canais de TV afirmar como absurdo o fato do traficante ter uma casa com piscina, numa comunidade onde muitos passam fome... Que piada! Quantas casas no Rio de Janeiro – onde muitos passam fome – têm piscina? A própria Fátima Bernardes – que acusou o traficante de tal “absurdo” – mora numa mansão localizada numa cidade onde muitos passam fome... Toda a elite carioca faz isso. Mas os holofotes se voltaram todos contra o traficante favelado, numa tentativa de esconder onde realmente ocorre as desigualdades, numa tentativa de esconder a real causa das desigualdades. Mas a causa da desigualdade não é o tráfico, a causa da desigualdade é a falta de oportunidade, a falta de educação, a falta de cultura, a falta de grana. O estado acirra as desigualdades e depois reclama da existência da marginalidade. Marginal é exatamente aquilo que está à margem, em muitos casos aquilo que foi colocado à margem pelo descaso das autoridades publicas. Enfim, o que vai acontecer? “Hoje, eu sou ladrão, artigo 157, a polícia bola plano, sou o herói dos pivetes”

Capítulo três, versículo quatro: A Copa do mundo é nossa! (e as Olimpíadas tambem!)




Pois é, o barato disso tudo é que só agora, às vésperas da Copa e das Olimpíadas é que os políticos resolveram “limpar” a cidade, impor a Pax Romana. Resolveram acabar com o crime mais ou menos organizado e calar a boca da população com as UPPs. E irão conseguir, daqui a quatro anos, todos estarão elogiando os políticos pelo feito “heróico”! Por ter acabado com o tráfico e com o crime que eles mesmos alimentam. É que não existe Estado se não há problemas para resolver, e o Estado moderno consiste muito mais num gerador de problemas para eternamente justificar sua existência. Enquanto o Estado puder manter o tráfico ele manterá, para justificar sua existência combatendo o tráfico; enquanto puder sucatear as estradas públicas ele sucateará: para justificar sua existência consertando as estradas. Enquanto puder manter as desigualdades, ele manterá: para justificar sua existência diminuindo as desigualdades. É um sistema de retro-alimentação, que funciona por feed-back. Não tenho ilusão quanto ao Estado moderno: ele é contraditório por princípio. Ou vocês acham que a coisa não anda por incapacidade das pessoas realmente? Seria julgar muito mal a capacidade intelectual do próximo. Com tanto dinheiro arrecadado dos impostos, seria muito fácil resolver os problemas. O problema é que, com tamanha evolução da tecnologia e o aumento da capacidade produtiva, uma vez resolvidos os problemas, o Estado perde sua razão de ser e leva com o ele a ideologia do lucro que pauta o mundo burguês. O estado tem que gerar a improdutividade para justificar as desigualdades. É melhor queimar dinheiro do que distribui-lo aos pobres. Por quê? Por uma razão muito simples: se o dinheiro for distribuído ele perde seu valor de troca, vira papel. E se a moeda vira papel a economia entra em colapso, e se a economia entra em colapso, quem perde são os que estão no topo da pirâmide. É simples: é melhor jogar o leite fora do que distribuí-lo, pois se for distribuído o preço cai vertiginosamente, e se o preço cai os produtores perdem seu poder financeiro. E aí você me pergunta: por que o governo compra o excedente da produção de álcool e prefere queimá-lo a distribuí-lo? Para manter os preços, óbvio! Não se trata de tal ou qual presidente (evidentemente há os melhores e há os piores), mas se trata mesmo do que o Estado se tornou por princípio, e o seu princípio é a improdutividade. A finalidade do Estado moderno é meramente econômica, isto é, torrar o excedente da produção para manter a economia em alta. Eu disse: torrar, não distribuir! E depois nos dizem que a economia em alta diminui a pobreza... Mas a pobreza e a exploração sob controle é justamente a condição de uma economia em alta... O papel do estado consiste apenas em manter a pobreza num nível em que esteja apta a consumir e a servir de mão de obra. O estado é aquele remador que, num barco, é encarregado de remar ao contrário; é o encarregado de criar pseudos-problemas para justificar o açoite. O Estado moderno é a trapaça burguesa. É simplesmente por isso que ele fará uma estrada que quebrará daqui a dois anos, justificando novos gastos do dinheiro publico, fazendo queimar o dinheiro para que ele não perca seu valor de troca (assim como ele queima o excedente da cana de acúcar, também queimará o excedente financeiro). E aí vocês me perguntam: porque ninguém acabou com o tráfico antes? Porque é preciso justificar o dispêndio de dinheiro com armamentos e com a polícia, porque muitos políticos recebem do tráfico. E porque resolveram acabar com o tráfico agora? Primeiro, não resolveram acabar com o tráfico, porque senão legalizariam ao menos a maconha e teriam criado um rombo nas finanças do tráfico. Segundo, porque estamos às vésperas da copa e das olimpíadas e a cidade precisaria ser limpa e não se poderia remover todo mundo da favela e jogá-los lá pra onde judas perdeu as botas, então, elimina-se ao menos os traficantes pé-de-chinelo (porque os que têm dinheiro não estão no morro, obviamente).


Capítulo quatro: Aquilo que me intriga...



Nessa história toda, o que mais me intriga é a necessidade de fazer coincidir o uso de forças armadas com o interesse da população. É a repetição incessante de imagens televisivas mostrando populares felizes com a invasão, cartas de apoio, etc. Evidentemente, não se trata, aqui, de negar que haja o alívio da população, e que eles se sintam aliviados da situação que viviam. Mas se trata, aqui, de perguntar o porquê do interesse repentino das emissoras de TV em mostrar essa aliança entre população e forças armadas como se fossem um só corpo, em mostrar as forças armadas como representando os anseios da maioria da população. Uma ideologia ocorre quando a classe dominante faz seus interesses coincidir com os interesses da população, ou melhor, quando faz seus interesses se passar pelos interesses da população. O papel fundamental da ideologia é mascarar a dominação e a exploração. Por exemplo, o Estado moderno cuja finalidade meramente econômica é mascarada sob o princípio de “bem comum”. Posto isso, retomo minha pergunta: por que a mídia está incessantemente batendo da tecla de que a ocupação do morro pelo exército representa os anseios da população? É difícil dizer que a população anseia que seu bairro seja sitiado e invadido pelas forças armadas... Os anseios da população não seriam, antes, por uma vida melhor, por educação, lazer, esporte, cultura, emprego, melhores oportunidades? Por que tudo isso é deixado de lado, e o “laço da concórdia” é sempre atado unindo população-esperança-forças armadas? Por que a repetição incessante de que “as forças do bem invadiram o morro” ou que “as forças do bem construirão novas instalações” ou que “as forças do bem trouxeram novas esperanças para o morro”? Seria o envio de alguma mensagem subliminar associando as “forças do bem”, “a esperança da população” e o “candidato do bem”? Da última vez que os militares representaram o anseio da população, deu no que deu... Mas acontece que, uma mensagem subliminar possui um poder de fogo muito maior do que uma palavra de ordem. A palavra de ordem cria resistências, ninguém gosta de obedecer; a mensagem subliminar deixa espaço para acreditarmos que chegamos por nós mesmo àquelas conclusões, nos pega com as calças arriadas, com as defesas abaixadas, é sempre enviada em associação com nossos desejos mais íntimos. A mensagem subliminar chega com pés de fadas em nossa cabeça, domina pela lisonja. Não negligenciem o poder de estrago que faz uma mensagem subliminar.


Mas ocorre que esse discurso chega exatamente ao fim de eleições presidenciais disputadas, onde a direita foi derrotada mesmo após uma campanha incessante da imprensa e todo o baixo nível e a apelação demonstrado pelos tucanos. Enfim, da última vez que se falou em militar nesse país, uma das coisas em voga era a associação entre o comunismo e o demônio, e entre as forças militares e as forças que iriam impedir que o demônio penetrasse em nossas fronteiras. Atualmente a direita americana usa o “terrorismo” como desculpa para cercear a liberdade pessoal e o direito de ir e vir, para aniquilar a capacidade de discernimento da população inoculando o medo em suas mente, para deixar todo cidadão psicologicamente armado contra seu vizinho ou seu colega de trabalho. E então? Logo após eleições presidenciais, com tamanha pressão da mídia contra a esquerda, eis que entram em cena as forças armadas, invasão de favelas, desmantelamento do QG do tráfico (mas não do tráfico mesmo), associação entre os interesses da população e os interesses das forças armadas. Qual seria o próximo passo? Reforço do exército para o combate ao tráfico? Reforço da polícia na favela (e nada de educação, cultura e oportunidades)? Ao bem da verdade, a associação entre os interesses da população e os interesses das forças armadas já foi feito, e não somente no Rio de Janeiro, mas tal associação já foi feita em todo o território nacional, já está se fazendo. É verdade que o brasileiro perdeu um pouco de medo de votar em um candidato da “esquerda”, vindo de classes baixas e que não é formado em uma instituição de ensino européia. Isso, por si só, já é um bom sinal. Mas a ascensão da esquerda fez aflorar também algo que estava adormecido no Brasil e que achávamos que não existia: os grupos de extrema direita e neo-nazistas, e as eleições desse ano, tão marcada por orkut, twitter, blogs, etc. deram provas disso.