sábado, 6 de março de 2010

Warhol: a agonia e a o grito colorido de uma imagem repetida



Smile, say “Warhol”, please

Nosso cotidiano é profundamente marcado pelo mass-media, somos bombardeados com mensagens – subliminares ou não – o tempo todo, seja dentro de casa, no emprego ou nas ruas. É característica própria do mass-media a veiculação de mensagens que serão compreendidas por todos de maneira similar, de maneira massificada. As HQs  (Histórias em Quadrinhos) são um bom exemplo disso, tanto por se inscreverem no seio da massificação quanto, por outro lado, conseguirem extrair da massificação uma linguagem artística própria. É bastante significativo que artistas como Roy Lichtenstein e Andy Warhol – os gurus da Pop Art – dedicassem atenção especial às HQs. Ocorre que estas narrativas se utilizam de padrões (standard) que permitem – ou, antes, obrigam – que os milhares de leitores interpretem as imagens, os textos e a seqüência da história de uma mesma maneira.[1] Este é um procedimento precioso ao mass-media no sentido em que não pode se dar ao luxo de permitir que as pessoas interpretem ao seu bel prazer as suas mensagens. O que seria de uma propaganda comercial ambígua? E se o consumidor entender a mensagem de um modo que desvalorize o produto? A propaganda comercial tem que ser rápida, clara, objetiva, sem ambigüidades acerca da mensagem a ser transmitida, e ainda assim, bela. Tal é o ponto em comum entre o mass-media e as HQs. A diferença entre eles é que as HQs não ficam presas à divulgação de um produto, podem divagar livremente no sonho, estão mais atentas ao quesito beleza do que ao quesito mercado. Uma diferença extremamente importante, evidentemente. A Pop Art levará adiante a proposta dos HQs e se servirá dos ícones do mass-media por serem elementos comuns ao cotidiano, e que são interpretados de forma similar pela maioria das pessoas. A coca-cola, Marilyn Monroe, Elvis Presley, Che Guevara. Basta a silhueta da garrafa de coca-cola ou o esboço do rosto de Marilyn para que eles sejam imediatamente reconhecidos. Lembrando que estes ícones não se reduzem somente às figuras humanas ou marcas comerciais, mas abarcam também os ícones produzidos pelo sensacionalismo da notícia, como desastres aéreos, tumultos civis, terremotos, pena de morte, Copa do Mundo, fofocas, etc. Aquilo de que se serve a Pop em suas obras não são somente as grandes marcas, mas tudo aquilo que circula e que é absorvido por um grande público. Eis a grande sacada da Pop Art: utilizar-se de produtos do mass-media (ícones da televisão, do rádio, da notícia, dos outdoors, das propagandas comerciais) como matéria prima para a linguagem artística. Tal utilização dota a Pop Art de uma linguagem que pode ser absorvida por qualquer cidadão em qualquer parte do mundo, independente de cor, raça, nível de educação, classe social ou opção sexual, isto que confere uma universalidade à Pop Art que inexiste em outros movimentos artísticos. Uma das funções da arte é comunicar um sentimento através da matéria (seja ela física, imagética, sonora ou verbal), e extração e a comunicação de um feeling a partir de uma matéria bruta amplamente conhecida coloca a Pop Art na posição de uma das vanguardas mais frutíferas do séc. XX. Não é de se admirar que tenha exercido influências em âmbitos tão díspares como o Psicodelismo, Michael Jackson, Basquiat, o Rock’n Roll e o Tropicalismo. Seja na pintura, na música ou na literatura, seja nos EUA ou nos trópicos, desde movimentos reconhecidamente midiáticos, até aqueles que iam de encontro aos valores vigentes, todos eles se serviram de técnicas da Pop Art. O que fez da Pop Art um fenômeno mundial não foi o seu caráter comercial, mas a universalidade de sua comunicação. Um quadro de Elvis, uma cadeira elétrica, são ícones reconhecidos e compreendidos de maneira similar em qualquer lugar do mundo. A utilização de ícones do mass media como tema para as obras facilitam o acesso às mesmas. Estes ícones, aqui, são a matéria prima a ser transformada em linguagem artística, e não  simplesmente apologia ao consumismo ou ao sensacionalismo.

Ocorre que a relação entre o tema, as cores e as técnicas de reprodução e repetição utilizadas por Warhol conseguem extrair uma potência imagética singular, criando uma poética própria. Em alguns casos a imagem consiste simplesmente numa repetição monocromática de uma imagem retirada dos jornais. Para essas lavadas monocromáticas, Warhol geralmente utiliza a imagem de algum tipo de tumulto, acidente, ou alguma coisa que tenha a ver com o caos e com a morte, como por exemplo em Orange Disaster (acima) ou em Red Race Riot, ambos de 1963. Orange Disaster é composto apenas da repetição monocromática da imagem de uma cadeira elétrica. Esta obra possui ares sinistros, a imagem repetida de uma cadeira elétrica isolada numa sala de execução; a cor escolhida não é a crueldade do vermelho, mas um tom de laranja velho, ácido e radioativo, cuja lugubricidade é ressaltada pelo preto que o acompanha. O quadro é uma velhice corrosiva. O retrato fiel do carcereiro que habita em nossos julgamentos e que aprisiona nossos espíritos. A imagem da cadeira elétrica como tema cai como uma luva porque evoca, desde já, o julgamento, a condenação e a morte. Este simbolismo é despertado de maneira similar em qualquer lugar do mundo, em qualquer faixa etária e classe social. Os tons sujos que compõem a obra nos remetem imediatamente ao submundo das grandes cidades, à pobreza, à cadeia, à vida aprisionada, julgada e condenada ao ressentimento típico desses elementos.

No lado oposto há as composições a partir do retrato de Marilyn Monroe. Aqui o artista escolhe o que seja, talvez, o maior mito da publicidade. Marilyn Monroe é retratada por Warhol quase sempre com cores vibrantes e em imagens chapadas. Embora se trate de um retrato não há a expressão psicológica do retratado. Os quadros não buscam captar a personalidade de Marilyn. Os tons vibrantes e a utilização da serigrafia quase sempre fazem o rosto de Marilyn desaparecer sob as cores. Os quadros de Marilyn retratam o sexy appeal, mais do que a própria Marilyn. E o que era Marilyn senão um produto do mass-media para representar o sexy appeal? Porquê escolher Marilyn? Porque qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo sabe o que Marilyn representa. Basta um retrato de Marilyn para criar uma obra de arte? Não. Além do rosto da loira há também a mão do artista, que o estiliza em cores ardentes – quentes e vibrantes – e linhas sinuosas e agressivas. Aí está um retrato fiel do sexy appeal. Marilyn está para o séc. XX, assim como a Afrodite está para os gregos. Marilyn retratada ora em serigrafia e com cores ardentes retiradas dos anúncios de revista e outdoors; ora em negativos de fotografias e em luzes quentes extraídas dos anúncios em néon da vida noturna. A composição de Warhol transborda o ícone Marilyn Monroe, conseguindo identificar o sexy appeal das luzes da vida noturna e dos anúncios chamativos. O feeling da obra transborda a imagem de Marilyn e capta o sexy appeal de uma metrópole inteira. Com a Marilyn de Warhol a metrópole inteira se torna sexy: a vida na metrópole é um tesão.

Tanto o quadro da cadeira elétrica quanto o quadro de Marilyn possuem elementos em comum: ambos têm como tema ícones vastamente conhecidos e compreendidos de forma similar em todas as partes do globo terrestre, as cores utilizadas e a composição da obra remetem a um feeling já contidos nestes ícones, mas também os transbordam e permitem associações deste mesmo sentimento à elementos da vida urbana. Com um ícone minuciosamente extraído do mass-media, com a escolha extremamente precisa e cônscia das cores (Warhol estudava acuradamente as cores de suas composições), com a utilização de traços e linhas muito cuidadosa e utilizando-se dos mesmos processos tipográficos que os jornais e propagandas de revista, Warhol consegue saltar do retrato de um rosto – ou da imagem contida em uma notícia – à expressão de um século inteiro. Assim sendo, seria incorreto se disséssemos que o séc. XX é uma obra de Andy Warhol? O fato é que Warhol se atém a tudo o que há de mais repetitivo em nossas vidas: as imagens do mass-media, as cores da propaganda, a imagem impressa através de chapas ou serigrafia, a exposição repetitiva do mesmo objeto e as linhas estilizadas dos produtos de consumo (seja a linha elegante das grandes marcas de moda, seja a blotted line dos produtos baratos). Tudo isso conjugado em uma composição cujo grito faz tremer alguma coisa em nós mesmos e reacende uma chama há muito tempo escondida por esses mesmos estereótipos e imagens standardizadas do mass-media. A arte de Warhol é antropofágica exatamente naquilo que ninguém cria poder ser deglutido: da escravidão mental imposta pelo mass-media, Warhol extraiu o seu sonho liberador, o seu grito, a sua canção. No muro do mass-media, tão avesso a pichações, foi este o local improvável que Andy Warhol escolheu para fazer suas travessuras e marcar de uma vez por todas a sua passagem única por este planeta. Why so serious? Amém!


[1] “Lichtenstein [Roy Lichtenstein, Nova York, 1923] dedicou-se a um dos principais canais da cultura de massa, as narrativas ilustradas (cartuns, histórias em quadrinhos); de fato, um dos sintomas mais preocupantes da propensão da sociedade contemporânea a negligenciar o discurso, a linguagem articulada, a escrita e a leitura. A análise da banalidade desse tipo de comunicação, feita por Lichtenstein, é metodologicamente irrepreensível. Isola uma imagem da tira, aumenta-a, estuda acuradamente os processos, inclusive tipográficos, que a tornaram comunicável em milhões de exemplares: reproduzindo-o manualmente, com microscópio, ele demonstra que esse processo de produção industrial de imagens é de absoluta correção, um modelo de perfeição tecnológica. Coloca-se, em suma, na posição de diretor técnico, que sabe quais foram os problemas e dificuldades enfrentados para chegar ao padrão que permite que milhões de pessoas leiam ao mesmo tempo a mesma narrativa, interpretem-na do mesmo modo, sintam a mesma emoção momentânea e, um segundo depois, esqueçam-na. Os consumidores de histórias em quadrinhos são poupados de qualquer mínimo esforço intelectual; tudo foi pensado, preparado, digerido de antemão. A pintura (mesmo que já não se possa chamar assim) de Lichtenstein é uma prova de inteligência, mas em essência demonstra apenas que o artista pegou o truque, e está capacitado para participar do ‘truste dos cérebros’”. ARGAN, Arte Moderna – do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Cia das Letras, 1992. Pg. 582-584. Considero a análise de Argan perfeita no que toca às técnicas utilizadas pelas HQs e reproduzidas por Lichtenstein, contudo Argan – assim como a grande maioria dos críticos de arte – negligenciam aquilo que constitui a potência própria tanto das HQs como da Pop Art.   

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