domingo, 23 de junho de 2013

E o que você viu, cara-pálida? (Parte II)



UMA ANÁLISE DE CASO


A presente reportagem do G1 nos oferece uma boa oportunidade para desmascarar os veículos de comunicação em massa, como que em flagrante delito. Detenhamo-nos ante as imagens e suas legendas. Observemos – como ensina Espinosa – o modo como as coisas são produzidas. Ou, no caso em questão, como uma narrativa é produzida. Adentremos, então, na fabricação do real. Como sabemos a diferença entre a ficção e o jornalismo é meramente estilística. Façamos, então, uma análise do pastiche em questão: (i) título, (ii) narrador, (iii) personagens.

O que diz o título? “Protesto em Salvador deixou quatro viaturas e três bancos destruídos.” Esse título evidencia a realidade? As únicas coisas destruídas foram as viaturas e os bancos? Quantos foram feridos pelas balas de borracha? Quantos receberam bombas de lacrimogênio quando estavam sentados? E o direito de ir e vir? Não foi ofendido? E o direito à manifestação livre, garantido pela constituição também não foi depredado pela polícia? O título nada diz acerca dessas outras depredações. A única coisa que não poderia ser depredada – e que portanto renderia uma manchete – eram as viaturas e os bancos. As viaturas e a polícia não me representam, elas representam uma sociedade onde a educação falhou. Quanto mais a educação falha, mais é necessário o uso da polícia. Mais educação e menos polícia! E os banco$$$ também não podem ser atacados! Ataquem tudo menos o capital, menos a propriedade privada, menos os aparelhos repressores. Depredar direitos, vidas e corpos é normal; depredar os aparelhos repressores, o capital e a propriedade privada é crime. É isso que o título nos revela.

O título nos leva ao narrador e às suas ideologias. O narrador, diz-se, é a entidade que conta a história. Quem conta a história? Dê uma olhada no site em que a matéria foi publicada... Qual é o site? Isso te diz alguma coisa? Além disso, dê uma olhada nos pessoas que dão sustentação financeira ao(s) grupo(s) midiático(s) em questão? São as grandes empresas e os bancos. Você acredita que essa reportagem é livre? Eu também não! O narrador conta a história de uma determinada perspectiva, de uma determinado ponto de vista. De que ponto de vista esse site fala? Do ponto de vista da população? Evidentemente, não. Ele fala do ponto de vista do mercado, dos interesses privados, das grandes corporações e de seus anunciantes. Ocorre que, ao ler a narrativa desse ponto de vista, nos colocamos, também do ponto de vista das grandes corporações. Evidentemente, o ponto de vista das grandes corporações não é o nosso. A perceber o mundo da forma como descrita pelo narrador, terminamos por internalizar suas ideologias e aceitá-las como se fossem nossas. É isso que faz com que uma população lute por sua escravidão como se fosse por sua liberdade. Ao se posicionar discursivamente do ponto de vista de seu opressor, a população termina por aceitar suas ideologias. Ocorre, mesmo, de lutar em nome de seu opressor. Desse modo, não é de se espantar que, no meio de uma manifestação por um país melhor, muitos terminem por reproduzir e defender o discursos fascistas.

A outra questão são os personagens da manifestação: os pacíficos e os vândalos. Como se sabe o juízo de valor é relativo; se fosse absoluto, não seria juízo de valor. E, sendo relativo, ele remete à perspectiva de onde avaliamos. A perspectiva, nesse caso, é dada pelo narrador. Ora, haja vista o que já falamos sobre o narrador, não é de se estranhar que os “manifestantes” que cantam o hino, que louvam a pátria que me pariu, que apanham docilmente da polícia e que não têm uma reivindicação concreta sejam considerados os “legítimos manifestantes”, os “bons manifestantes”. Bom para quem, cara-pálida? Por outro lado, aqueles que atentam contra os bancos, contra a polícia, aqueles que têm uma reivindicação concreta, aqueles que realmente atentam contra o sistema político em que vivemos, esses serão os vândalos. Vândalo? O termo vândalo foi legado como uma qualificação negativa justamente pelos romanos. Ora bolas, por que os romanos consideravam os vândalos como algo negativo? Justamente porque foi o povo que ousou enfrentar a tirania romana... E não é outro o motivo da valoração atribuída pela narrativa-reportagem. Evidentemente, se a população que lê essa reportagem coloca-se, dócil e despreparadamente, da perspectiva criada pelo narrador, tenderá a reproduzir as mesmas valorações. E não é estranho que essa mesma população vá para as ruas delatar os “vândalos”; que dê entrevista dizendo que os “vândalos” não os representam. Boa parte dessa população está habituada a enxergar o mundo da perspectiva criada pelas narrativas da TV. Como se percebe, tal narrativa produz ilusões. E, para tratarmos de ilusão, nada melhor do que nos servirmos de algumas categorias da literatura...

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